17/05/2016
“Vivemos numa era em que nossas cidades são armadas com aço e concreto; computadores e aparelhos eletrônicos obstruem nossas mentes. Isso não muda o fato de que existem muitos fenômenos estranhos e bizarros além da razão ou da lógica.
A maioria das pessoas não os vê, mas isso é porque nos apegamos à ordem, a qualquer pequena felicidade que aparece no caminho, e nos esforçamos arduamente para nos cegarmos com nossos desejos e prazeres.
Há um mundo de trevas lá fora, além do tempo e espaço. Um mundo cheio de maldade que é inegavelmente real.
E, nesse mundo, há coisas que andam à solta.”
– Wicked City (Yoshiaki Kawajiri, 1987)
Se você frequenta este site, é certo que você conhece o cenário Mundo das Trevas, o Sistema Storyteller e seus jogos famosos: Vampiro: A Máscara, Lobisomem: O Apocalipse, Mago: A Ascensão, Changeling: O Sonhar, entre outros. Esses jogos são hoje considerados seminais e paradigmais, pois mudaram completamente a cena mundial de RPG quando foram lançados entre início e meados dos anos 90, influenciando muitos autores que viriam depois e estabelecendo novos (e altos) padrões para RPGs de fantasia urbana.
Contudo, pode-se dizer que o Mundo das Trevas tinha um prazo de validade, já que cada um de seus jogos tinha estabelecido em sua mitologia um “armagedom”: a ameaça de uma catástrofe de proporções bíblicas (ou cósmicas, dependendo do jogo em questão) que levaria ao fim do mundo. No início de 2004, 13 anos após o lançamento da 1ª edição de Vampiro: A Máscara, esse armagedom finalmente aconteceu, pondo um fim ao Mundo das Trevas e encerrando a publicação de seus jogos. Mas a White Wolf, editora que criou e publicou os jogos do Mundo das Trevas até então, não poderia simplesmente destruir sua propriedade mais querida e preciosa, deixando um grande espaço vazio no lugar não é mesmo?
E assim surgiu o Crônicas das Trevas.
Antes de falar do Crônicas das Trevas propriamente dito, é preciso deixar claro que ele não é uma continuação do Mundo das Trevas original, por mais que hajam semelhanças entre os dois cenários. Mesmo em sua 1ª edição, ele já possuía inúmeros elementos que o tornavam um cenário totalmente distinto daquele de onde se originou.
É mais correto afirmar que o Crônicas das Trevas é uma reimaginação ou um remake do Mundo das Trevas: foram reaproveitados alguns temas e nomenclaturas, até para manter um certo senso de familiaridade entre os dois cenários, ao mesmo passo que foram inseridos muitos conceitos novos; tudo com o intuito de criar algo que, se não é totalmente original, certamente têm uma forte identidade própria. Bons exemplos disso são os filmes A Mosca, de David Cronenberg, e O Enigma de Outro Mundo, de John Carpenter, quando comparados com suas versões originais da década de 1950 (A Mosca da Cabeça Branca e O Monstro do Ártico, respectivamente).
Acho importante, também, dar uma passada pelo histórico de publicação do cenário, que passou por várias dificuldades e mudanças que culminaram na publicação recente de sua 2ª edição. Senta que lá vem história!
Em agosto de 2004 é lançado pela White Wolf o livro-básico The World of Darkness (lançado em português aqui no Brasil em 2006 pela Devir Livraria como O Mundo das Trevas). O livro expõe o novo cenário do ponto de vista do ser humano comum que, por puro acaso ou curiosidade, acaba tendo um vislumbre do sobrenatural ou encontros terríveis com as criaturas que se escondem nas sombras. A parte de criação de personagens também é voltada para se jogar com um humano comum, mas todo o conjunto de regras básicas contido no livro vai servir para todos os jogos do cenário, entre os quais temos Vampiro: o Réquiem, Lobisomem: os Destituídos, Mago: o Despertar, etc.
O novo sistema de regras é chamado de Storytelling System (ou Sistema Storytelling, em português), que é uma evolução do antigo Sistema Storyteller, mas falaremos mais sobre a parte de regras em outra oportunidade.
Essa decisão editorial de lançar as regras básicas num único livro foi bem interessante, já que no antigo Mundo das Trevas essas regras eram reimpressas nos livros-básicos de cada jogo, o que consumia algumas preciosas dezenas de páginas que (na minha opinião) poderiam ser usadas para fins mais interessantes, como aprofundar a descrição do cenário de cada jogo, por exemplo.
Com intuito de diferenciar esse novo cenário do Mundo das Trevas original, já que ambos possuíam o mesmo nome até então, os fãs e a própria White Wolf logo passaram a chamá-lo de “New World of Darkness” ou pelo acrônimo “nWoD”, enquanto o antigo passou a ser chamado de “Classic World of Darkness” ou “cWoD”.
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Após a venda da White Wolf para a empresa islandesa CCP Games em 2006, o lançamento de novos jogos e suplementos para o nWoD foi diminuindo ao longo dos anos, até praticamente cessar. E é nesse momento que a Onyx Path Pulishing entra na jogada.
A Onyx Path Publishing (OPP) é uma editora fundada em 2012 por ex-funcionários da White Wolf. No mesmo ano de sua fundação, a editora obtêma editora obtém da CCP a licença para desenvolver e lançar novos produtos para as várias linhas de jogos da White Wolf, o que incluía tanto o nWoD quanto o cWoD.
Em 2013 a Onyx Path lança o livro The God-Machine Chronicle, que seria algo como uma edição “1.5”, pois apresenta uma atualização sensível do cenário e das regras apresentadas no livro-básico de 2004, com muitas modificações e acréscimos em ambos, mas sem ser propriamente uma nova edição.
A mais impactante das mudanças no cenário é a inclusão do Deus-Máquina (o God-Machine do título original do livro), mas falaremos mais dele adiante.
Em outubro de 2015, a empresa sueca Paradox Interactive compra a White Wolf da CCP Games, com a intenção de “trazer de volta do topor” o Mundo das Trevas clássico.
Com isso, em janeiro de 2016, a Onyx Path anuncia que o cenário antes conhecido como New World of Darkness passa agora a se chamar Chronicles of Darkness (Crônicas das Trevas, numa tradução livre). Essa mudança tem a intenção de separar de vez o CofD do WoD (que também mudou de nome e passou a se chamar “One World of Darkness”), encerrando assim as confusões entre ambos, tornando-os totalmente independentes.
Aí você me pergunta: “por que esse nome, Chronicles of Darkness?”. Pois muito bem, em 2012 a Onyx Path estava desenvolvendo uma 2ª edição para o cenário, que foi vetada pela CCP. Em vez disso, eles lançaram um livro que propunha a ideia de uma crônica construída ao redor de um grande mistério e um adversário imensurável, o Deus-Máquina, lançando assim a tal edição 1.5 intitulada The God-Machine Chronicle em 2013.
Seguindo essa ideia, Vampiro: o Réquiem teve o livro Blood and Smoke: The Strix Chronicle (Sangue e Fumaça: A Crônica das Estirges, numa tradução livre) lançado antes de obter sua 2ª edição oficial, e outros livros-crônicas para os outros jogos estavam programados, que agora serão todos lançados no formato de 2ª edição. Imagino que, levando tudo isso em conta, a escolha do novo nome para o cenário não deve ter sido difícil.
De qualquer forma, logo após esse anuncio da mudança de nome, finalmente foi lançada oficialmente a 2ª edição do livro-básico de regras do Chronicles of Darkness. O livro reúne todas as mudanças e adições apresentadas em The God-Machine Chronicles, além de outras mais.
Ufa! Agora que já passamos por todo o turbulento histórico de publicação do cenário, vamos à sua ambientação!
Uma das premissas do Crônicas das Trevas é que não existe nenhuma verdade absoluta no cenário. Isso porque a intenção dos autores, desde o começo, foi se distanciar do metaplot e das verdades gravadas em pedra presentes no Mundo das Trevas, tornando o novo cenário uma caixa de ferramentas para que o Narrador tenha mais liberdade em criar suas histórias e até mesmo sua própria versão das Crônicas das Trevas.
Assim, perguntas como “quem foi o primeiro vampiro?” ou “o que realmente é o Deus-Máquina?” têm várias possíveis respostas apresentadas nos livros. Cabe ao Narrador escolher a que melhor se encaixa na história que ele quer contar, ou simplesmente ignorar todas elas e criar a sua própria.
Mesmo com toda essa liberdade: a premissa básica do cenário é bem solida sólida e conhecida: nós, reles mortais, não somos o topo da cadeia alimentar. Há criaturas horríveis saídas diretamente de pesadelos (algumas sendo o próprio pesadelo) vivendo entre nós, protegidos pelo anonimato proporcionado pelas sombras da noite.
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O mundo ao redor é o mesmo que nós, jogadores, vivemos no nosso cotidiano, só que visto por um prisma obscurecido. Isso significa que, nas Crônicas das Trevas, a violência que assola as cidades é muito mais pungente, com gangues promovendo verdadeiros banhos de sangue em suas disputas e o cidadão comum matando seu vizinho numa discussão por motivos tão fúteis quanto o maldito cachorro que não para de latir à noite. A corrupção dos governos, bancos e grandes corporações é muito mais descarada e perniciosa, tornando a decadência das áreas mais pobres muito maior, com direito a bairros e cidades-fantasmas, abandonados após toda a esperança ter sido drenada do local, junto com a dignidade de seus moradores. Prédios gigantes de aço e vidro erguem-se no coração das grandes cidades como verdadeiras Torres de Babel, como se tentassem alcançar o firmamento num desafio à qualquer possível divindade que esteja além dele. Nos subúrbios, casas com grades ou tábuas nas janelas não são incomuns, cada família vivendo isolada do implacável mundo exterior em sua pequena fortaleza.
O mesmo serve para as áreas rurais, que são muito mais selvagens mesmo a poucos quilômetros de distância do perímetro urbano, o que torna as viagens pelo solo muito mais perigosas e imprevisíveis. A última coisa que você vai querer é que seu carro quebre no meio do nada, ou acabar se perdendo no meio da mata fechada após sair da trilha…
E, como se não bastasse toda a maldade e degradação humana elevada à décima potência, ainda há as criaturas sobrenaturais predando o gado humano. Você pode encontrar desde um jovem vampiro caçando sua próxima presa entre os jovens num clube de dança, ou um arremedo de ser humano trazido à vida por um cientista louco, até pessoas que voltaram da morte após um pacto com entidades estranhas no Submundo ou anjos feitos de cabos de fibra-ótica e peças hidráulicas levando adiante os desígnios do Deus-Máquina na forma de revelações aos mortais.
E por falar nele, o que é o Deus-Máquina? A resposta mais sincera é: ninguém sabe ao certo. Esse é um mistério ainda inescrutável.
Uns acreditam que ele é um aparato criado por uma raça alienígena em tempos imemoriais para estudar o nosso planeta e torná-lo habitável para essa raça. Outros acreditam ser uma inteligência artificial criada por cientistas na Guerra Fria e que ganhou consciência e vontade própria. Outros ainda acreditam ser o Deus-Máquina a verdadeira face do deus bíblico, controlando esse grande jogo de simulação que chamamos de realidade.
Uma coisa porém é certa: quanto mais você procurar por respostas, maiores são as chances de você ser notado pelo Deus-Máquina ou por seus servos e emissários, e aí é tarde demais para se afastar de tudo isso. Muitos acabam desaparecendo sem deixar rastros ou tornando-se agentes de sua vontade, mas a maioria acaba enlouquecendo muito antes disso.
Isso tudo acaba por dar ao Crônicas das Trevas uma temática tecno-lovecraftiana (acabei de inventar essa expressão, o que significa que ela sempre vai direcioná-lo a este site numa busca no Google ;) ), onde um(a) ser/máquina com nível de poder aparentemente divino manipula nosso mundo (e outros, talvez) por debaixo dos panos/linhas telefônicas/sistemas operacionais, e há toda uma atmosfera de conspiração e desinformação encobrindo seus planos e ações.
Mas não vou escrever mais nada, pois tudo isso vai parar na Internet e temo atrair a atenção indesejada do Deus-Máquina… espero que tenha sido o bastante para acender o interesse de vocês pelo cenário.
Mas antes de encerrar, vamos enumerar brevemente os outros jogos da linha. Enquanto o livro-básico se concentra em apresentar as ferramentas para se jogar uma crônica com humanos comuns, ainda há possibilidade de se jogar com os outros habitantes das Crônicas das Trevas.
Atualmente o CdT é composto de dez jogos diferentes, com um décimo-primeiro a caminho. Alguns deles são inspirados em jogos existentes no Mundo das Trevas original, outros são criações completamente novas. São eles, em ordem de lançamento:
Os que têm o título em português são os que tiveram sua 1ª edição lançada aqui no Brasil pela Devir Livraria, mas estão todos esgotados. Você só encontra essas edições da Devir em sebos ou nas comunidades de venda e troca de artigos de RPG.
Os livros publicados no Brasil, por serem da 1ª edição, estão com o cenário e as regras defasados em relação ao que está sendo publicado em inglês para o Crônicas das Trevas, mas ainda assim vale muito a pena lê-los e jogá-los, simplesmente porque são ótimos!
Quem tiver domínio do inglês e quiser jogar o Crônicas das Trevas básico com as regras atualizadas, pode baixar esse PDF de graça no DriveThruRPG e usá-lo em conjunto com a edição brasileira de O Mundo das Trevas. Nesse PDF estão contidas as atualizações nas regras publicadas no The God-Machine Chronicle de 2013.
E para aqueles que quiserem entrar de cabeça no cenário, a 2ª edição completa de Chronicles of Darkness também está à venda em PDF e impressão sob encomenda no DriveThruRPG.
Esqueci de mencionar que, por enquanto, somente Vampiro: o Réquiem e Lobisomem: os Destituídos e Mago: o Despertar tiveram suas 2as edições lançadas lá fora. Seguindo o cronograma, Promethean é o próximo e os outros jogos virão na sequência. As exceções são Demon: the Descent e Beast: The Primordial, que foram lançados já sob as regras da 2ª edição.
Bom, acho que para um primeiro contato com o Crônicas das Trevas, conseguimos abordar bastante coisa! Num próximo artigo pretendo abordar as regras do cenário, que são a estrutura sobre a qual as histórias e crônicas são montadas. Por terem tido muitas mudanças no Sitema Storytelling nessa 2ª edição, e mais diferenças ainda entre ele e o Sistema Storytelling do Mundo das Trevas, ficaria inviável falar sobre tudo isso num só artigo.
Espero ver vocês por aqui em breve. Até mais!